quinta-feira, 24 de setembro de 2009

COMUNICAÇÃO COMO MIDIATIZAÇÃO

Comunicação como midiatização:
os meios em meio à tecnologia, sociedade, linguagem, e vice-versa

André Dornelles Pares (Brasil, adpares@gmail.com)


1 Introdução
2 A parte da comunicação como midiatização
3 A parte dos meios eletro tecnológicos de comunicação de massa (ou de acesso plural e simultâneo)
4 A parte da sociedade e linguagem, e vice versa
5 Conclusão
Notas
Referências

RESUMO
É possível dizer que o campo de estudos da Comunicação, já perfeitamente instituído, permanece discutindo a natureza do conhecimento da sua área. Também é razoável afirmar que um campo de conhecimento deve possuir especificidades que o garantam como campo autônomo de estudos. Partindo dessas premissas, este artigo pretende discutir de forma introdutória uma demarcação possível para o estudo da Comunicação. Como alternativa, supõe a comunicação como um processo de midiatização. Para isso, considera a posição fundamental dos meios, aqui entendidos como meios eletro-tecnológicos de comunicação de massa, que permitem o acesso plural e simultâneo às mensagens que produz. A partir daí, as relações entre linguagem e sociedade que possibilitam.
PALAVRAS-CHAVE:Comunicação. Midiatização. Meios. Tecnologia. Sociedade. Linguagem.

1 Introdução

A variedade de temas, de objetos, de teorias e concepções sobre a própria área é tal que restam poucos espaços de consensualidade para além do fato de que nos pretendemos todos ‘pesquisadores no Campo da Comunicação’.
José Luiz Braga, 2004

Não há como negar que a palavra ‘construção’ está obrigatoriamente presente na ciência que tentamos fazer. A afirmação de que o campo da Comunicação é um campo em construção, já é um lugar comum há algum tempo. Isso, porém, não o diferenciaria dos outros campos de conhecimento, nem nos desculparia da nossa falta de especificidade. Todos os campos de conhecimento específico estão em permanente construção. A diferença seria o tipo de construção, talvez. Na maioria dos outros campos: Física, Biologia, Matemática, Agronomia, Música e etc., as especificidades da sua matéria permitem que a construção sejam reformas, por permanentes que possam ser. No campo da Comunicação, não podemos pensar a construção como não sendo a própria constituição da área, que parece não saber ainda se o edifício que constrói é um prédio de moradores ou um hotel.

Costumamos usar a desculpa de que se trata de uma ciência muito nova. É preciso atentar, desta frase, sobre o que se está considerando novo, e o que se diz quando se menciona ciência. Marx, Durkheim e Weber viveram na virada do século XIX para o XX, com exceção do primeiro, 40 anos mais velho. Naquele tempo, tornaram a ciência da sociedade uma sociologia: um logos da sociedade: um conhecimento específico, tornado ciência, via método próprio de análise, de um processo no mundo que lhes interessava.

No começo do século XX nasciam Adorno e McLuhan, para mencionar apenas dois nomes que podem ser considerados teóricos da comunicação, que se não foram contemporâneos, pertenceram à imediata geração de Durkheim e Weber. Mesmo que Adorno ainda tenha se ocupado muito mais das possibilidades de autonomia do sujeito, ambos tiveram os processos de comunicação social humano como fundamental tema de sua produção intelectual.

O curioso é perceber que cem anos passados do que poderíamos considerar o início do uso do termo a designar determinados processos de troca de informação sob um modo específico, o termo comunicação resistiu. Quer dizer, estudos de Comunicação não passaram a se chamar comunicologia (por exemplo), assim como a ciência da sociedade passou a ser denominada sociologia. Comunicação ganhou um paliativo ciência na frente (Ciências da Comunicação), e nós, ainda grifados, passamos a nos denominar comunicólogos, mais paliativo ainda, talvez.

O ônus da generalidade persistente no termo acaba aparecendo invariavelmente como o pedágio que se deve pagar a tudo aquilo (e às áreas que estudam esse tudo) que também é abrigado quando se menciona o termo comunicação: de um gesto a uma pintura, de um programa de tevê a uma conversa no ônibus.

Tal constatação corriqueira não poderia ser mais do que um mero problema de nomenclatura, e ser percebida como um indicativo das possibilidades e impossibilidades de se fazer especificamente ciência com isso que chamamos genericamente de comunicação?

2 A parte da comunicação como midiatização

No início de A Midiatização no processo social, Gomes diz que “´[...] é certo que o campo de estudo da comunicação (com suas peculiaridades, processos e métodos) volta o seu olhar tanto para o campo midiático propriamente dito quanto para outros objetos com uma mirada característica do campo da comunicação” (GOMES, 2006, p. 112).

Poderíamos listar uma série de questões referindo os subentendimentos encontrados na frase. As questões apontadas a seguir, no entanto, são destacadas porque servem à reflexão tratada inicialmente: “que comunicação nos interessa”? Ou: “de que comunicação estamos falando”? Nesta perspectiva, em relação às afirmações de Gomes, aparecem três questionamentos:

a) que peculiaridades, processos e métodos são os do campo de estudo da Comunicação? (Porque se é possível caracterizá-lo como um campo de estudo específico, talvez seja justamente por suas peculiaridades, processos e métodos);

b) por que ainda se menciona a divisão entre um campo midiático propriamente dito e outros objetos, aos quais esse olhar tão específico da comunicação como campo de estudo se debruça? (Qual a marca que separa o ‘midiático’ dos ‘outros objetos’? Por que seria preciso mencionar essa divisão? Porque ela ainda não é clara o suficiente? ), e;

c) qual é a mirada característica do campo da comunicação? (Havendo uma, seria o que lhe daria especificidade?)

Se o próprio Gomes, pouco antes, afirma que “[...] para pensar o campo da Comunicação, deve-se preliminarmente contemplar a tensão que há entre o campo de estudos da comunicação e o campo midiático propriamente dito” (GOMES, 2006, p.112), podemos inferir duas coisas. A primeira é que há dois campos que tratariam de um mesmo tema (ou, ao menos, parecido); a segunda, que, aparentemente sabendo que não são o mesmo (campo), não sabemos que (tipos de) relações mantêm. Mas o que talvez seja mais importante ter consciência é que parece não sabermos, ao certo, no que se constitui nem um campo (comunicação), nem o outro (midiatização). Se isso é verdade, a tarefa teria que ser entender os campos nas (ou a partir das) relações que mantêm, as quais também se precisa saber como se dão.

Ou seja, da forma que for – conceituar os campos para entender suas relações, ou entender suas relações para conceituar os campos – partimos de processos e objetos amplos, difusos, e até ambíguos: nos quais, a princípio, não teríamos marcadores explícitos que sinalizassem pertença a este ou aquele campo. De qualquer maneira, a opção de conceituar os campos parece fundamental, ainda que entender as relações entre eles seja igualmente essencial para defini-los. O fato é que definir o que é (ou o que abrange) o conceito de comunicação é tarefa gigantesca – e essa enormidade (de processos e objetos) parece ser levada ao campo quando o denominamos de estudos da Comunicação. Da mesma forma, definir midiatização (o que constitui ou define sua ação, e os processos e objetos que abrange) é tarefa que só se pode fazer tentativa e teoricamente, antes de examinar as ações que envolve e as relações que estabelece.

Nesse sentido, duas notas auxiliam no esforço conceitual como base de partida. A primeira é de Braga, em texto intitulado Os estudos de interface como espaço de construção do Campo da Comunicação. Ao mencionar o holismo conceitual, que não deve servir de álibi quando se afirma que o campo está em construção, explica que o uso do termo holismo é apenas para caracterizar uma possível (e não desejada) autorização ao estudo de “toda e qualquer questão humana e social (‘tudo é comunicação’)”, o que, no seu entender, corresponderia “[...] também a um ‘imperialismo’ disciplinar que tende a subsumir as demais disciplinas” (BRAGA, 2004, p. 2).

Ora, a tarefa que se tenta apontar aqui, de separar a comunicação que nos interessa da que não nos interessa diretamente, seria algo muito parecido com o que Braga denuncia. “Toda e qualquer questão humana e social” corresponde exatamente à generalidade do termo comunicação, e é justamente esta generalidade que não deve (devia) nos interessar, primeiramente. Pareceria, também, ser nada mais do que os outros objetos os quais Gomes antagonizava ao campo midiático quando propunha um entendimento do campo da comunicação tencionando ambos os conteúdos. Aparece um apontamento concreto, assim, de Braga e Gomes, a seus modos, para uma especificação de processos, e talvez objetos, na medida em que buscam identificar algo dentro do campo da comunicação que não é exatamente o processo geral pelo qual podemos entender o termo comunicação.

Isso poderia ser acentuado ao percebermos a segunda nota, explicada por Fausto no texto Midiatização, prática social – prática de sentido. Ao assumir que a proposta do trabalho é construir (também!) uma idéia de midiatização como prática social – prática de sentido no curso dos estudos e dos próprios fenômenos midiáticos, remonta à expressão Processos Midiáticos. A menção decorre do fato (midiatização) gerar “[...] conceitos e também programas de estudos de investigação” (FAUSTO NETO, 2006, p. 2). Pois quando a expressão nomeia o programa de pesquisa em Comunicação (da Unisinos, neste caso), não se pode negar a decisão, por mais abrangente que se queira encará-la, ainda, de determinada caracterização dos processos, e talvez objetos, que interessam dentro do campo.

É claro que essa escolha deliberada, dentro de um campo que carrega a generalidade que o termo que o nomeia impõe, por algo que se passa a chamar de ‘midiatização’ já estaria evidente. Mas quando o conceito surge de antemão, como nos títulos dos trabalhos de Fausto e de Gomes, sua explicação poderia parecer não necessária (como não é o caso, advirta-se, nos dois trabalhos). No texto de Braga, todavia, o momento desta deliberação aparece, e se torna importante porque permite visualizar a nova (ou outra) idéia soltando-se da carga de amplidão da idéia geral de comunicação: “Parece-me que esse núcleo de aceitação mais generalizada é constituído pelos estudos sobre a mídia e seus processos” (BRAGA, 2004, p. 3) – núcleo de interesse de estudo que o autor consideraria, no processo de construção do campo da comunicação, como relativamente consensual.

Em seguida, porém, e a partir daí, inaugura outra questão que passará a ser fundamental, desde que aceita a deliberação pela centralidade da mídia no campo da comunicação. É preciso saber, evidentemente, “o que pode ou deve ser considerado mídia”. E mais do que isso, “o que, na mídia, interessa mais diretamente ao Campo (da Comunicação)” (BRAGA, 2004, p. 3). É possível inferir daí outros dois problemas a serem enfrentados. Primeiro, o de uma nova necessidade de conceituação: achar traços que caracterizem algo como mídia. Segundo, o de poder identificar – assim que caracterizada – o que nela (mídia) pode ser um problema de comunicação. Isto é, não basta identificar o objeto materialmente, mas o que ele faz, como pistas de onde poderia estar algo no mundo que viria a ser de interesse específico de um campo denominado da Comunicação. Entraríamos aí, talvez, num caminho que poderia nos fornecer alguma especificidade, no sentido de possuirmos um modo de olhar e um fenômeno de interesse aparentemente independente de outras áreas de conhecimento. Encontrando o(s) objeto(s) que preencha(m) as condições para que o(s) consideremos mídia, teríamos que ir para além da análise de sua materialidade. Isso não quer dizer que o exame dos mecanismos, estruturas e funcionamento no material mesmo não seja necessário. Mas, o que o forma deve ser peçachave para entender o que exala dele. Aí, parece, na materialidade do objeto com a junção de seus processos, poderíamos engendrar algo como uma mirada específica.

3 A parte dos meios eletro tecnológicos de comunicação de massa (ou de acesso plural e simultâneo)

Braga, em nota do mesmo texto, vai fechar o círculo ao mencionar a expressão “processos mediáticos”. Agora, porém, podemos visualizar aquilo que passaria a servir como um início de especificidade, isto é, como aquilo que emana para além do que for materialmente considerado mídia. “Hoje se pode considerar adquirido que interessam os processos mediáticos (sociais, culturais, simbólicos, de sentido, políticos...), bem mais complexos e difusos”. Ou seja, como afirma anteriormente, “[...] ultrapassando um período em que ‘os meios’ forneciam a base (e aí, o estrito processo referido pelo modelo Emissor-Mensagem-Receptor)” (BRAGA, 2004, p. 4).

Da posição de Braga, duas impressões podemos tirar. A primeira: ainda que possamos passar a entender a idéia de processos na expressão processos mediáticos sendo aquilo que exala da mídia atingindo, se misturando e/ou se relacionando com outras estruturas de ação humana, a fila dos processos com os quais a mídia se relaciona (partindo da idéia de que é na relação com a mídia que tais processos possam passar a ser denominados midiáticos) é de elementos de ordens bastante distintas: “[...] sociais, culturais, simbólicos, de sentido, políticos”. Não seria o caso de procurar algo em comum, que poderia ser a gênese que torna estes processos de outras ordens midiáticos? (E essa origem, ou traço em comum, não estaria nisso que tentamos classificar como mídia, que, em contato com os outros processos, os torna relativamente midiáticos?).[¹]

A segunda impressão, baseada nesta, é sobre a afirmação da ultrapassagem da idéia de meio como base. Se não relevamos a dúvida acima, da possibilidade de os processos passarem a ser caracterizados como midiáticos na medida em que se relacionam com o que passamos a chamar de mídia, o conceito de meio talvez não só não possa ser ultrapassado, como a sua posição de base parece ter que ser antes revista do que deslocada (e nesse caso, a reboque, pode ser preciso também rever até que ponto o modelo Emissor-Mensagem-Receptor passa a ser estrito).

Talvez seja na esteira de uma idéia nesse sentido – da função fundamental (básica?) do meio – que Gomes faça um levantamento das possibilidades de significado do termo ‘mediação’ no seu texto referido. Lá, porém, ele parte já da idéia de midiatização para tentar recuperar o conceito de mediação. A midiatização, entendida como “[...] um novo modo de ser no mundo”, “[...] uma nova ambiência”, “[...] supera o conceito de mediação, mesmo sendo este mais que um terceiro elemento que faz a ligação entre a realidade e o indivíduo via mídia” (GOMES, 2006, p. 113, 114).

Quem propõe claramente a passagem de mediação para midiatização, no entanto, é Sodré: “[...] está presente na palavra mediação o significado da ação de fazer ponte ou fazer comunicarem- se duas partes”, enquanto midiatização seria “[...] uma ordem de mediações socialmente realizadas caracterizadas por uma espécie de prótese tecnológica” (SODRÉ, 2006, p. 20).

Dos dois autores, em comum o que fica é a idéia de um processo de relação entre duas coisas. Enquanto Sodré fala em “ponte” a ligar “duas partes”, Gomes é mais direto, ao mencionar que a “ligação” se dá “entre a realidade e o indivíduo”. O fim da frase de Gomes e o fim da frase de Sodré parecem, então, fechar outro círculo: enquanto um diz que a ligação acontece “via mídia”, o outro praticamente a caracteriza: “[...] uma espécie de prótese tecnológica”. Um meio, portanto, virado mídia ao assumir características tecnológicas, a ligar duas partes: a realidade e o indivíduo.

Verón, em Esquema para el analisis de la mediatización parece estar preocupado justamente com esta questão etimológica-terminológica, que não teria outra função senão caracterizar “[...] o que chamamos de meio de comunicação social”, para “[...] aclarar razoavelmente o que podemos entender por ‘midiatização’” (VERÓN, 1997, p. 10).

Para que a noção de meio de comunicação possua uma especificidade historicamente interessante, evitando uma pertinência tão ampla que termine incluindo todos os avatares simbólicos da humanidade, convém associar o princípio de produção tecnológica de mensagens. [...] o qualificativo tecnologia permite incluir os processos de reprodução mecânica como a imprensa, e também os processos eletrônicos próprios das novas tecnologias de comunicação” (VERÓN, 1997, p. 12).

Dois momentos são importantes da sua afirmação:

a) ficam claras duas características do meio: que ele produz mensagens (produção que seria aquilo a ligar as duas partes, recém mencionada), e que essa produção é tecnológica; e

b) parece que apenas a característica da tecnologia ainda é abrangente enquanto traço que busque especificidade, na medida em que pela sua marca ficam no mesmo bojo as características mecânica e eletrônica desses meios. A abrangência seria um problema, porque a mecanicidade não teria exatamente as mesmas características da eletricidade (ou eletrônica), ainda que ambas sob o manto da tecnologia.

Isso talvez ficasse visível não mais em nível de produção estritamente falando, mas em nível de transmissão. Um jornal impresso produziria suas mensagens mecanicamente (é claro que já há modos de produção impressa eletrônicos, mas fiquemos com a idéia de Verón), e por isso seria chamado de tecnológico; mas esse modo de produção acarreta num modo de transmissão (da mensagem) que não é tecnológico: o acesso do leitor é particular no momento do contato com a mensagem produzida tecnologicamente mecanicamente: ele lê sozinho o jornal. Um meio produzido eletricamente (ou eletronicamente) acarreta numa transmissão de mesmo modo, a qual possibilita um acesso coletivo (simultâneo): mesmo que apenas uma pessoa entre em contato com ele. A possibilidade de ser acessado por mais pessoas simultaneamente (que é a oferta característica dessa transmissão) está lá. Esta possibilidade de coletividade no acesso (de acesso coletivo simultâneo) à mensagem pode ser marcante, na medida em que poderia moldar o modo de recepção: é uma mensagem que pode ser vista por muitos ao mesmo tempo, e, por isso, a mensagem transmitida teria um certo poder – pela amplitude de sua transmissão, o que lhe conferiria automaticamente determinada importância.

Ao assumir o sentido sociológico pelo qual lhe interessa definir os meios de comunicação, Verón parece atentar para essa questão ao usar o adjetivo plural. Dizendo que uma carta e o uso do telefone não se enquadram na definição de (meios de) comunicação que lhe interessa, define o “[...] acesso plural às mesmas mensagens” como característica essencial para o que se passa a considerar mídia (VERÓN, 1997, p. 16).

Todavia, ainda parece faltar um traço que pode ser também marcante. Não bastaria ser apenas plural, ainda que nessa idéia esteja guardada a possibilidade de acesso coletivo em oposição ao particular[2]. A simultaneidade do acesso à mensagem parece ser fator fundamental para marcar por que o meio (entendido como mídia em função da sua composição tecnológica) deveria aparecer como o objeto específico da mirada do campo da comunicação (ou da midiatização!): o acesso da mesma mensagem, ao mesmo tempo – simultaneidade – (só possível através da eletro-tecnologia) garantiria uma diferença peculiar em relação ao demais processos comunicacionais dos outros objetos que não os midiáticos.

Ou seja, a conclusão poderia ser a de que, na comunicação que nos interessa, estaríamos ocupados dos meios eletro-tecnológicos de comunicação de massa como aquilo a ser observado, e não mais entretidos com qualquer objeto ou ação que possa em geral comunicar. Na influência das considerações de Verón, poderíamos então inclinar a definição do que nos interessaria observar especificamente para ‘meios eletro-tecnológicos transmissores de mensagens de acesso plural simultâneo’ (VERÓN, 1997)[3].

4 A parte da sociedade e linguagem, e vice versa

O próprio Verón, no entanto, observa que tal caracterização específica é necessária, mas não suficiente: “A especificidade circunscreve dispositivos tecnológicos de produção-recepção de mensagens, mas a comunicação midiatizada é algo mais que isso” (VERÓN, 1997, p. 12). Na afirmação do autor, poderíamos entender que estabelecer (e entender) as características do objeto material que nos interessa é importante, mas, como mencionado antes, além (e por causa, talvez, mas não só) dele é preciso se interessar pelo o que eles fazem.

Verón, por mais de uma vez, aponta que o contexto em que isso pode (ou deve) ser examinado é o dos “usos sociais”. Isto é, aquilo (mensagem) que exala disso que caracterizamos como mídia (um meio de ligação eletro-tecnológico plural e simultâneo entre realidade e indivíduo), emana-se, através do uso, pela (na) sociedade. Ao sentenciarmos tal insuficiência da análise material, instauramos a necessidade de observar os processos que o material engendra. Se o objeto material é a mídia, os processos são midiáticos. Porém, é preciso estar atento até onde as condições de análise (o método de que se dispõe) têm o interesse no midiático e não já no ‘apenas’ sociológico.

Na concepção de Fausto Neto, a imbricação das duas noções – midiático e social – surge por uma recolocação do meio em relação a estes dois campos. O meio, que procuramos insistentemente caracterizar como elemento chave deste fenômeno de ligação o qual queremos saber como funciona quando se torna eltro-tecnológico, aparece então já deslocado de determinada posição (como mencionava Braga). Fausto Neto lança a idéia de que “a comunicação midiática resultante da existência e manifestação dos processos sócio-técnicos [...] deixa de ser meio – instrumento a serviço – para tornar-se elemento constituinte de uma nova realidade, em que seus processos e efeitos vão se constituindo em protagonistas centrais” (FAUSTO NETO, 2008, notas do autor). O meio (que era de ligação), portanto, podia ser entendido a partir de uma função instrumental, quase que externa ou estéril ao tecido social humano ao qual servia, agora o integra. Mas o integra em conseqüência, parece, da característica que assume: a eletro-tecnologia – o que estaria implicado na expressão “sóciotécnica” utilizada pelo autor, a qual permitiria, ou promoveria, este tipo de integração, que se mistura a processos que não são da natureza de apenas fazer ligar.

Aceitando-se que o processo emanado pela materialidade da (do objeto, meio) mídia adentra o social, manchando seus processos com as características que passa a adquirir nessa relação (e que ainda não sabemos exatamente quais são), precisaríamos entender como faz isso. Esse, então, deve ser, talvez, o momento em que nos encontramos atualmente, e por isso certamente o mais complexo de analisar. Lasch Scott, em Crítica de la información, parece ter a mesma desconfiança, e tentar uma descrição do momento “[...] a teoria midiática não explica nem interpreta os meios [...] pra falar a verdade, se parece mais com eles do que uma ou outra coisa [...]” (SCOTT, 2005, p. 137).

A crítica velada de Lasch Scott encobre quase uma confissão: se a teoria midiática se parece com aquilo que não sabemos ao certo como funciona, não podemos saber o que esta teoria pode nos dizer. O que sabemos é que se os meios, transformados em mídia, guardam a característica de transmissão de mensagem (ainda que o tipo e o modo da mensagem possam ter se modificado em função da eletro-tecnologia com que passam a ser produzidas e transmitidas), o fazem, ainda, através de uma linguagem.

É da perspectiva dos estudos que pensam a forma do discurso enquanto dispositivo de construção da nova rede que Fausto procura entender o conceito de midiatização. Diz: “[...] é a instância das linguagens como formas pelas quais os processos de midiatização realizam, dentre tantas coisas, as operações de inteligibilidade das realidades [...] e também a própria construção de realidades” (FAUSTO NETO, 2006, p. 11). Seriam “as linguagens”, sob esta ótica, que poriam “a midiatização em processo”, numa “prevalência da forma sobre o conteúdo semântico” (FAUSTO NETO, 2006, p. 9).

A forma da mensagem, na “idade midiática”, para Lasch Scott, está clara: “O conteúdo das máquinas midiáticas é a informação” (SCOTT, 2005, p. 130). Além disso, o autor faz uma distinção que pode ser salutar: a informação não é discurso: “[...] a tecnologia transforma o conteúdo em informação não reflexiva” (em oposição à reflexividade que, segundo ele, teria o discurso). Se a marca da forma desta linguagem é a pura e ininterrupta informação, pela permissão que o modo eletro-tecnológico de produção e transmissão lhe dá – e que ao permitir, estimula –, o que consistiria o modo de ação (o processo) através do qual a mídia se embrenha na sociedade seria o da mensagem permanentemente informacional.

Com a prevalência na forma da mensagem, os meios muito mais produziriam conteúdo do que transmitiriam ‘simplesmente’ um conteúdo que não seria fabricado por eles. Pois o modo é a única coisa que é própria do meio, já que o conteúdo, ou a mensagem a ser transmitida, é um fato do mundo, exterior ao meio de comunicação, quando o pensamos meramente como algo (um instrumento) cuja função seria representar esse fato. O salto, então (a caminho da midiatização, quem sabe), parece acontecer quando o meio não mais se resigna a este papel, e por isso carrega no modo – o único lugar onde pode afirmar sua existência autêntica[4].

Quando a própria mídia, além de construir determinada realidade em função da ênfase no modo da produção e transmissão da mensagem, passa a ter a necessidade de firmar-se deliberadamente através da auto-referência, constituindo-se praticamente ela mesma um acontecimento. Fausto Neto adverte:

O que importa não é mais um “mundo externo”, a ser apontado, mas o próprio processo e as operações realizadas pela economia enunciativa midiática para gerar a realidade. Ou seja, a ênfase está na enunciação que assim se formula como foco para poder saber, mostrar e dizer. Ou seja, a realidade da construção [...] já não se trata de falar das realidades, construídas segundo suas estratégias de enunciação. Mas, no lugar destas, mudar o referente, para dar ênfase a sua autoreferencialidade” (FAUSTO NETO, 2006, p. 13).

Considerando, então, que, ao carregar no modo, os meios eletro-tecnológicos de comunicação produzem conteúdos, e que estes conteúdos, formais, são de natureza tão somente informacional, temos a cara do encontro entre tecnologia, sociedade e linguagem. Um encontro que, ainda considerando Lasch Scott, produz um padrão de comunicação: o da efemeridade. Se a comunicação, entendida (aqui, agora) como midiatização, opera processos, que são instaurados na (e pela) sociedade (que produz e consome sua mídia) através de uma linguagem, que é moldada pelas possibilidades eletro-tecnológicas (de acessibilidade plural e simultânea), que produzem um conteúdo efêmero, o miasma do processo que engloba todas essas instâncias só poder ser o da própria efemeridade, a se refletir no comportamento social – engrenagem, arcabouço e universo que dá existência a essas próprias instâncias.

5 Conclusão

Ferreira, em Midiatização: dispositivos, processos sociais e de Comunicação, sugere que uma “análise do dispositivo midiático se configura a partir de uma matriz primária triádica”[5] (FERREIRA, 2007, p. 8). Essa configuração englobaria três sistemas: o social, o tecnológico e o de linguagem. A midiatização seria algo que se dá nas relações entre os três.

Poderíamos construir, a partir daí, um diagrama da midiatização: um triângulo com esses três vértices, que se auto-regulam principalmente pelo uso. Nele, a tentativa seria visualizar as operações de relação possíveis entre as três pontas: a tecnologia integrando o social através da linguagem (através dos meios); a linguagem integrando o social através da tecnologia (dos meios); o social reestruturando a linguagem através da tecnologia; a tecnologia reestruturando a linguagem através do (uso) social (dos meios); a linguagem... e etc.

A validade do modelo seria, quem sabe, pensá-lo como um método (um esquema, uma mirada) de análise para o que passamos a chamar de midiatização.

Assumi-la como a comunicação que nos interessa, ainda que seja uma deliberação que determine certa especificidade de enfoque, não abandonaria completamente as características dos tais outros objetos de comunicação. Na origem, não há como negar a natureza do processo comunicacional, presente, inegavelmente, em toda a sua abrangência: num aperto de mão e num happening, numa transmissão radiofônica e em sinais de fumaça.

Mantém, por certo, a idéia de midiatização, os traços originários de um processo que é de relação e que acontece por troca de dados. O modo em que isso acontece, agora escolhido, é que tenta se pensar específico (ainda que não se saiba, exatamente, quais são suas marcas próprias e o que elas podem fazer, realmente). Suspeita-se que esse modo, porém – a eletro-tecnologia empregada nos meios de comunicação, que os torna mídia, cujas características dos processos que exala ainda não temos capacidade nem método de identificar satisfatoriamente – remodele, se não integralmente, grande parte da relação comunicacional, principalmente nas relações sociais que, ao se entender comunicação como midiatização, parece um forte foco de interesse.

É claro que isso pode ser já uma obviedade. Mas dita, sua evidência pode ficar mais clara que subentendida.
Notas
[1] Todavia, a mídia parece não se engendrar sozinha, ou ‘do nada’. Como todo o processo humano, é formada, produzida, de coisas que a precedem. É preciso estar atento que não se trata de uma relação unidirecional de causa e conseqüência: da mídia para o social – é o próprio social humano, que, assim como acessa e consome, também engendra e produz os meios.
[2] Verón não usa o termo particular, mas ‘privado’, para se referir à carta e ao telefone. De qualquer forma, a leitura de um jornal impresso é particular, ainda que a mensagem trazida nele seja de acesso plural. Apenas o traço da pluralidade é que talvez pareça insuficiente, já que se pode ser acessado particularmente, ainda guardaria traços de um acesso privado. Por isso, a necessidade de outro traço, o que poderia ser a simultaneidade do acesso à mensagem transmitida pelo meio, como mais uma especificidade a marcar a força do objeto que nos interessaria e dos processos que geraria.
[3] Um outdoor, por exemplo, não se enquadraria porque não tem a ‘força’ de uma mensagem transmitida eletro-tecnologicamente, de acesso plural e simultâneo (não estaríamos entrando em contato com aquilo só naquele momento: ele estaria ali, a nossa disposição, a qualquer momento, ainda que pudéssemos acessá-lo plural e simultaneamente).
[4] Caso não se considerasse autêntica a função de representar, no sentido de transmitir, uma mensagem de conteúdo totalmente alheio, como tendemos a achar que é da natureza de um meio de comunicação.
[5] Para a idéia/conceito de dispositivo é essencial consultar o próprio texto.

Referências

[<]BRAGA, José Luiz. Os estudos de interface como espaços de construção do campo da comunicação. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, 13., 2004, São Bernardo do Campo, SP. [Anais...] São Bernardo do Campo, 2004. GT Epistemologia da Comunicação.

[<]GOMES, Pedro Gilberto. A midiatização no processo social. In: _____. Filosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

[<]FAUSTO NETO, Antônio. Midiatização: prática social – prática de sentido. In: SEMINÁRIO MEDIATIZAÇÃO, 2006, Bogotá. [Paper] Bogotá, 2006.

[<]FERREIRA, Jairo. Midiatização: dispositivos, processos sociais e de comunicação. São Leopoldo, RS, 2007. Paper do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

[<]VERÓN, Eliséo. Esquema para el analisis de la mediatización. Diálogos de la Comunicación, Lima, n. 48, out. 1997.

[<]SCOTT, Lasch. Crítica de la información. Buenos Aires: Amorrortu, 2005.

[<]SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: Moraes, Denis. Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.


2 comentários:

Unknown disse...

From: adpares@gmail.com - ANDRÉ PARES

Chego e a primeira coisa que faço é ver se teu cheiro ficou ali. Não tinha pensado nisso antes. Fiz de impulso. Encosto o rosto no travesseiro. Como foi o resto do sábado, Raquel? Encontro o doce, a suavidade, o pequeno longo creme que meu nariz percorre quando te toca, ali na fronha. Sempre quero esperar um pouco (dias, meses, a vida toda) antes de escrever. E vou te confessar uma coisa: (não gosto de escrever – o faço por outros motivos, entre os quais a vaidade tem muito mais espaço que o gosto). Mas escrevo porque é no que fiquei pensando. Um calor este fim de semana.
Então te conto duas coisas, que se pensar muito, já não escrevo mais. Desejaria dizê-las, mas com as palavras faladas tenho menos jeito ainda. Parece que estar contigo, e te ter do jeito que posso ter, me faz esquecer de lembrar da menina do colégio: é como se curasse algo. Contigo, talvez entenda o que a Letícia me diz às vezes: que se atrapalha quando está comigo, que esquece do tempo e etc. Contei.
Mas além do calor, fiquei um pouco atrapalhado, sim. “Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo”, mas tem umas, que preciso de calma, que preciso entender, que são muito intensas pra serem assim tão rápidas. Tu, sentada na minha cama, mesmo que seja ‘apenas’ pra te beijar a boca, os lados do pescoço e o peito, é uma coisa desse tipo: que devia levar algumas horas: tempo de ficar em volta de ti: de me aproximar, me afastar, chegar perto de novo, e voltar a ficar longe, e perto, de olhar bastante antes de tocar, de ver de canto, sem ser visto, de observar, de procurar, de fazer subir, e deixar baixar, a vontade, só pra levantá-la outra vez, de sentir o prazer de saber que se pode ter (me lembro do trecho do teu e-mail há cinco anos que dizia algo como ‘querer ter na tua cama quem escrevia aquelas palavras’). Tão atrapalhado, peguei a camiseta errada ao sair, se ela suasse podia não cheirar bem. Esqueci de te mostrar o lenço dobrado que te secou da chuva, desde aquele dia descansando na gaveta. E de apertar o play pra Adriana contar até três. Isso é curioso, é estranho, é bom, e eu espero não estar usando nenhuma palavra errada: talvez eu ache que seja viver sem estar planejando (algo que de tão difícil pra mim, eu esteja atrás há um tempo). Talvez seja uma liberdade que abra os poros: algo que sinto quando tu me toca, e quando tua voz entra nos meus ouvidos. Lamento se exagero, Raquel: talvez eu só queira querer que isso seja simples assim. Gostei muito de tu ter estado aqui: descer a lomba contigo daquele jeito: uma cumplicidade de criança, quase (se tu não ficar ofendida), ou de quem vira adulto, não sei.
Uma moça tão curiosa quanto tu não tem nenhuma chance de ser pouco inteligente (a não ser que queira fazer esse charme); entre outras coisas, fico impressionado com a tua maneira de mudar e aceitar o que nós poderíamos chamar de ‘regras desse jogo’ (na falta de expressão melhor): essa tua impetuosidade. Sentir as tuas mãos é tão bom quanto deslizar as minhas entre teu joelho e teu short. Vou tirar o ar condicionado da tomada.
No centro, v. ramil tocava umas músicas. É um chato como muitas coisas em porto alegre são, mas essa letra, afora a pretensa erudição, me chamou a atenção mais uma vez: talvez valha pela última estrofe.

Anônimo disse...

mas é um legítimo Don Juan!!!